sexta-feira, 24 de maio de 2013

Ushuaia – Duas Rodas e Um Sonho Cap 21 - A tempestade


Ushuaia – Duas Rodas e Um Sonho
Cap 21 - A tempestade


O plano era sair de Buenos Aires * bem cedo, ao amanhecer, a fim de cumprirmos com o trajeto programado para o dia.

* Buenos Aires ("Bons Ares", em português) é a capital e maior cidade da Argentina, atualmente é a segunda maior área metropolitana da América do Sul, depois de São Paulo. A cidade está localizada na costa oriental do Rio da Prata, na costa sudeste do continente sul-americano. A cidade de Buenos Aires não faz parte da Província de Buenos Aires e nem é sua capital, mas sim, é um distrito federal autônomo. A Grande Buenos Aires é a terceira maior aglomeração urbana da América Latina, com uma população de cerca de 13 milhões de habitantes e considerada uma cidade global.
Pessoas nascidas em Buenos Aires são chamadas de "porteños".
Fonte: Wikipédia

O amanhecer em Buenos Aires é muito lindo, pois a metrópole adormecida começa a acordar devagarzinho, e aos poucos, um barulho aqui, um carro que passa pela rua devagar, o abrir das portas dos cafés e os primeiros raios de sol, invadem as ruas e avenidas.

Buenos Aires é uma cidade realmente linda, com suas largas avenidas, seu casario característico, seus cafés, suas praças muito bem cuidadas e suas paixões, qual sejam o tango e o futebol.
Mas, como em todo lugar, tem também a pobreza, e ela acorda junto com o sol, desocupando as marquises dos prédios e portas das lojas.

Na calçada frente ao hotel, ainda com o sol nascente, aqueles que trabalharam a noite toda, tomam o rumo de casa para o merecido descanso, enquanto outros, ainda sonolentos, começam a deixar suas casas, cada qual para o seu destino, na dura rotina do trabalho, neste final de 2009.

Ao chegarmos a garagem onde nossas motos dormiram tranqüilas, constatamos que uma delas apresentava um pequeno vazamento de óleo, que podia ser visto no chão, logo abaixo do motor, prendendo a atenção de todos.

Nos preparativos da nossa expedição, desde o princípio havíamos definido que em item que envolve segurança, não haveria exceção alguma, e qualquer das motos que apresentasse algum problema, deveria ser tratado da melhor maneira possível.

Assim sendo, o Gica que veio nos encontrar no hotel para nos levar até a saída da cidade, inicia uma série de telefonemas até encontrar uma oficina especializada para o reparo pois a loja da Harley não abre às segundas feira.
Em Buenos Aires e principalmente em uma segunda feira, o pessoal começa a trabalhar mais tarde, por volta das 10h é que oficinas especializadas abrem suas portas.
Depois de certo tempo, enfim achou uma oficina que poderia fazer o reparo e o comboio se deslocou pelo centro da cidade até o bairro de Palermo e lá ficamos aguardando a abertura da oficina.
Um senhor muito simpático e amante do motociclismo iniciou os reparos na moto que apresentava vazamento e enquanto isso, a turma animada ficou no jardim em frente da oficina, claro, dando boas gargalhadas um com outro.

Nas conversas com os amigos enquanto o reparo era efetuado, nenhum stress ou menção alguma sobre o atraso, pelo contrário.
O pensamento era único, este atraso nada mais é do que um redirecionamento do nosso tempo, á medida que, não temos qualquer domínio sobre ele, mas Ele sim tem, e aquilo era tão somente, um ajuste feito por Ele, que nos pouparia de algo pior na frente.
Se aquilo aconteceu, foi porque tinha de acontecer.

O problema se resumiu a nada mais do que um aperto mal feito na tampa que protege a caixa de câmbio, e depois do re aperto, tudo resolvido, e o Gica nos guiou até a saída da cidade, se despedindo de todos e nos desejando uma ótima viagem.
Céu fechado e as roupas de chuva foram retiradas dos bagageiros para a partida definitiva.

 O Chico então, pergunta para mim: 

-        Pires, agora o caminho é para baixo, estás pronto?

A resposta foi um “sim”, mas confesso que deu um frio na espinha ao pensar que, daquele momento em diante, o rumo seria único, rumo sul, rumo ao fim do mundo sem saber o que nos esperava pela frente, pela Ruta 3, que seguiríamos até o seu final.

O que nos espera?
Quais desafios encontraremos pelo caminho?
A resposta não existia, só uma certeza: a companhia dos amigos, a vontade e a
determinação em chegar ao destino final, e o retorno seguro para casa.
Então, partimos, Ruta 3, mais de 3.700 km pela frente, rumo ao desconhecido.

E o primeiro grande desafio não tardou a chegar, pois menos de 60 km depois de Buenos Aires, uma tempestade veio a nosso encontro, e veio forte, muito forte, como poucas que vimos ate hoje.
Uma verdadeira bomba d´água nos pegou de frente com ventos laterais fortíssimos, muita água, e o transito intenso de caminhões em sentido contrário, aumentavam ainda mais a tensão ao pilotar a moto.
Era tanta chuva que não se enxergava praticamente nada a não ser o farol dos carros em sentido contrário, e as lanternas das motos dos amigos que iam a frente.
Pilotar com chuva é complicado e perigoso, exige a máxima atenção possível do piloto, pneus em bom estado e uma boa proteção para o corpo são essenciais em uma hora destas.
Neste aspecto, todos estávamos devidamente preparados.
Menos o Toninho, que não havia colocado a capa de chuva, e foi obrigado a fazer um pit stop em um posto de gasolina para colocar a roupa quente, embora neste momento, já estivesse com até com a alma molhada, de tanta chuva que havia tomado.
Em seguida, logo a frente, nos alcançaria de novo, daí com toda a roupa vestida.
Foi um desafio enorme vencido pelo grupo, onde a camaradagem e o espírito de equipe mostravam o seu valor.
Como o rádio comunicador faz diferença numa viagem em grupo, deveria ser equipamento obrigatório, pois com ele, a segurança aumenta muito quando viajamos em grupo.
Avisos sobre pista escorregadia, buracos, caminhões em sentido inverso, carro na retaguarda, carro ultrapassando eram dadas a cada instante.
Estas informações, além das brincadeiras durante o trajeto, nos acompanhariam durante toda a nossa expedição.

Muita tensão em um longo trecho da rodovia, que tem bom pavimento, mas a chuva era tamanha, que parecia estarmos deslizando sobre um rio negro.
Vimos que estávamos prestes a vencer a primeira batalha quando horas depois, vimos lá ao longe no horizonte, sinais de que a tempestade estava terminando.
Passamos por ela, rasgamos ela ao meio com nossas valentes companheiras e o sol mostrou sua beleza, secando a pista e trazendo de novo, a sensação maravilhosa de pilotar uma moto, ao lado de amigos, rumo ao desconhecido.
Acima de nós, como em São Gabriel, avistamos um bando de pássaros voando rumo sul, saindo da tempestade, assim como nós.
A natureza é fantástica, pois ao mesmo tempo em que proporciona momentos de tensão e de perigo, também proporciona cenas maravilhosas como aquelas á nossa frente.
Novamente, podíamos associar um bando de pássaros voando num lindo céu pintado de dourado, com o nosso bando cá embaixo, rodando juntos e comemorando o fim da chuva.
Ambos rumando juntos, e saindo com vida da tempestade, que ainda podíamos observar pelo retrovisor de nossas motos.
Por debaixo do meu capacete, pensei:

-        Eles, em busca de um lugar seguro para passar a noite, assim como nós, rumo sul, Ruta 3, pois a noite vai chegar logo e também precisamos chegar a um lugar seguro para descansar nossos corpos.

Logo após a tempestade, veio o sol e a calmaria voltou na estrada novamente.
Com ela, as conversas no radio PX voltaram também, agora não para alertar sobre caminhões ou carros, sobre água na pista ou outro perigo.

E foi assim, que um assunto já esquecido e que tinha sido discutido no rádio PX ainda na saída do Brasil, voltou a ser discutido neste trecho da Ruta 3:

-        O significado da palavra CAPÃO.

Isto mesmo, “capão”.

Coincidentemente, neste trecho da Ruta 3, após termos passado pela tormenta, avistamos vários “capões” no caso, de mato, e o assunto voltou a tona.
Tudo começou quando o Chico perguntou, em algum outro ponto da estrada, lá no Brasil:

-        Alguém aí sabe o significado da palavra Capão?
-        Porque temos Capão da Canoa, Capão Alto, Capão Redondo?
-        Olha Chico, veja bem, aqui no meu Rio Grande, capão é um amontoado de árvores juntas, soltas no meio do campo, responde o Beber.
-        É isso mesmo, lá em São Paulo o significado é este mesmo, um capão é o resto de uma floresta ou capoeira que existia, e que ao ser derrubada para dar lugar ao pasto, o homem preservou um restinho dela. Lá no meu estado, também temos nomes de cidades, como Capão Bonito, respondi eu.

Já o Toninho, deu outra versão:

-        Pessoal, posso falar?
-        Lá em Mato Grosso, “capão” é quando se “capa” o touro, o cachorro, o porco, para que engorde mais rápido, ou não procrie, então é assim que chamamos.
-        É o animal “capado” entendem?
-        Olhem ali, á direita, aquilo então é um “capão”? Pergunta o Alexandre.
-        Exatamente meu caro, aquilo ali é um “capão” e é assim que o conhecemos, confirmou, confirmando o que eu havia falado.
-        Exatamente Beber, é isto mesmo, aquilo ali são “capões” de floresta, confirmei.

A verdade é que quando se viaja em um grupo de amigos como o nosso, o estado de espírito de todos é tamanho diante da felicidade em estar ali, viajando de moto, ao lado de pessoas amigas, que qualquer assunto é bom, mesmo que o tema seja desconhecido ou que em qualquer outra roda de conversa, se tornaria sem qualquer interesse, como este do “capão”.
Ao viajar de moto ocorre uma transformação no seu modo de enxergar as coisas, fazendo com que, um assunto bobo, seja debatido até a exaustão.

Foi o caso do “capão”, que relatei apenas como exemplo.
Mas tiveram muitos e muitos outros ao longo da nossa jornada.

Vamos sentir muitas saudades das longas discussões que fizemos pelo rádio PX durante a nossa expedição.
Este é apenas um exemplo que lembramos.

O que se pode observar neste trecho entre Buenos Aires e o Rio Colorado, são imensas fazendas de criação de gado, plantação de girassol, milho, soja e outras variedades a perder de vista.

E seguíamos felizes pela Ruta 3, bom asfalto, longas retas e longas discussões sobre os mais variados temas.
Ao final da tarde entramos em Bahia Blanca *, simpática cidade localizada próxima ao litoral argentino.

* Bahía Blanca é uma cidade da Argentina, na província de Buenos Aires, distante 650 km da Capital Federal. Foi fundada em 11 de abril de 1828. O nome Bahia Blanca tem origem da brancura dos salitres costeiros. É a cidade urbana mais importante do sul argentino e importantíssimo complexo portuário, sendo o porto de grãos mais importante do país. Sua população é de 274.509 habitantes (2001).
Cidade tipicamente industrial. Abriga muitas indústrias químicas, dentre elas, uma refinária da Petrobrás.
Fonte: Wikipédia

Seguindo o Road Captain, rumamos direto ao posto de combustível marcado no GPS para abastecimento das motos e deixá-las prontas para a partida na manhã seguinte.
Esta dica é de grande valia aos viajantes que nos lêem neste momento:
Dormir com todas as motos abastecidas para, no dia seguinte, não perder nenhum minuto em abastecimento.
Parece nada, mas faz enorme diferença na saída do dia seguinte e esta regra seria seguida em todas as nossas paradas.

O grupo também ia se transformando, e já havia desenvolvido habilidades entre os membros, deixando de ser dependente de um ou dois amigos mais experientes.
Assim, enquanto uns terminavam o abastecimento, o Beber e o Buatim se encarregavam de procurar e negociar as tarifas dos hotéis, enquanto todos esperavam no posto.

Assim, evita-se que todos se desloquem no transito mais pesado das cidades e, assim que os dois retornassem com duas ou mais alternativas de tarifas, o grupo escolhia e todos iam juntos ao hotel.
Coisa linda.

Eu e o Lelê nos encarregávamos da escolha do restaurante para o jantar, e o Ivan, das dicas de passeio.

Nos deslocamentos, Lelê como RC, o Chico como apoio, e o Joaquim como Cerra Fila cuidavam do comboio.

Toninho e MacGyver, não deixavam ninguém com sono no percurso, com suas histórias, desafios de conhecimento e as brincadeiras, tudo pelo rádio.
Estávamos nos tornando uma equipe.

Naquela noite, no hall do Hotel, ficamos sabendo por um viajante que aquela tempestade que pegamos no início do caminho, havia horas antes passado próxima dali, e muito mais intensa do que havíamos enfrentado, com ventos fortíssimos, muito mais perigosos.

Me lembrei das gotas de óleo debaixo da moto, que nos obrigou a fazer o reparo e atrasou nossa partida.
Se tivéssemos saído mais cedo, teríamos pegado a tempestade muito mais intensa do que pegamos e isto, nos deu um conforto maior ainda.

Neste dia, um jantar com as excelentes carnes argentinas foi oferecido por mim, já que era a minha primeira viagem internacional de moto.

O primeiro grande desafio havia sido vencido, enfrentamos o imprevisto em Buenos Aires e a Tempestade no caminho.
Isto tudo havia servido para uma união ainda maior do grupo, e isto já dava para sentir pelas atitudes e disposição de todos os companheiros.