Ushuaia – Duas Rodas e Um Sonho
Cap 21 - A tempestade
O plano era sair de
Buenos Aires * bem cedo, ao amanhecer, a fim de cumprirmos com o trajeto
programado para o dia.
* Buenos Aires
("Bons Ares", em português) é a capital e maior cidade da Argentina,
atualmente é a segunda maior área metropolitana da América do Sul, depois de
São Paulo. A cidade está localizada na costa oriental do Rio da Prata, na costa
sudeste do continente sul-americano. A cidade de Buenos Aires não faz parte da
Província de Buenos Aires e nem é sua capital, mas sim, é um distrito federal
autônomo. A Grande Buenos Aires é a terceira maior aglomeração urbana da
América Latina, com uma população de cerca de 13 milhões de habitantes e
considerada uma cidade global.
Pessoas nascidas em
Buenos Aires são chamadas de "porteños".
Fonte: Wikipédia
O amanhecer em Buenos Aires é muito lindo, pois a
metrópole adormecida começa a acordar devagarzinho, e aos poucos, um barulho
aqui, um carro que passa pela rua devagar, o abrir das portas dos cafés e os
primeiros raios de sol, invadem as ruas e avenidas.
Buenos Aires é uma
cidade realmente linda, com suas largas avenidas, seu casario característico,
seus cafés, suas praças muito bem cuidadas e suas paixões, qual sejam o tango e
o futebol.
Mas, como em todo
lugar, tem também a pobreza, e ela acorda junto com o sol, desocupando as
marquises dos prédios e portas das lojas.
Na calçada frente
ao hotel, ainda com o sol nascente, aqueles que trabalharam a noite toda, tomam
o rumo de casa para o merecido descanso, enquanto outros, ainda sonolentos,
começam a deixar suas casas, cada qual para o seu destino, na dura rotina do
trabalho, neste final de 2009.
Ao chegarmos a
garagem onde nossas motos dormiram tranqüilas, constatamos que uma delas
apresentava um pequeno vazamento de óleo, que podia ser visto no chão, logo
abaixo do motor, prendendo a atenção de todos.
Nos preparativos da
nossa expedição, desde o princípio havíamos definido que em item que envolve
segurança, não haveria exceção alguma, e qualquer das motos que apresentasse
algum problema, deveria ser tratado da melhor maneira possível.
Assim sendo, o Gica
que veio nos encontrar no hotel para nos levar até a saída da cidade, inicia
uma série de telefonemas até encontrar uma oficina especializada para o reparo
pois a loja da Harley não abre às segundas feira.
Em Buenos Aires e
principalmente em uma segunda feira, o pessoal começa a trabalhar mais tarde,
por volta das 10h é que oficinas especializadas abrem suas portas.
Depois de certo
tempo, enfim achou uma oficina que poderia fazer o reparo e o comboio se
deslocou pelo centro da cidade até o bairro de Palermo e lá ficamos aguardando
a abertura da oficina.
Um senhor muito
simpático e amante do motociclismo iniciou os reparos na moto que apresentava
vazamento e enquanto isso, a turma animada ficou no jardim em frente da
oficina, claro, dando boas gargalhadas um com outro.
Nas conversas com
os amigos enquanto o reparo era efetuado, nenhum stress ou menção alguma sobre
o atraso, pelo contrário.
O pensamento era
único, este atraso nada mais é do que um redirecionamento do nosso tempo, á
medida que, não temos qualquer domínio sobre ele, mas Ele sim tem, e aquilo era
tão somente, um ajuste feito por Ele, que nos pouparia de algo pior na frente.
Se aquilo
aconteceu, foi porque tinha de acontecer.
O problema se
resumiu a nada mais do que um aperto mal feito na tampa que protege a caixa de
câmbio, e depois do re aperto, tudo resolvido, e o Gica nos guiou até a saída
da cidade, se despedindo de todos e nos desejando uma ótima viagem.
Céu fechado e as
roupas de chuva foram retiradas dos bagageiros para a partida definitiva.
O Chico então, pergunta para mim:
-
Pires, agora o caminho é para baixo, estás
pronto?
A resposta foi um
“sim”, mas confesso que deu um frio na espinha ao pensar que, daquele momento
em diante, o rumo seria único, rumo sul, rumo ao fim do mundo sem saber o que
nos esperava pela frente, pela Ruta 3, que seguiríamos até o seu final.
O que nos espera?
Quais desafios
encontraremos pelo caminho?
A resposta não
existia, só uma certeza: a companhia dos amigos, a vontade e a
determinação em
chegar ao destino final, e o retorno seguro para casa.
Então, partimos,
Ruta 3, mais de 3.700 km pela frente, rumo ao desconhecido.
E o primeiro grande
desafio não tardou a chegar, pois menos de 60 km depois de Buenos Aires, uma
tempestade veio a nosso encontro, e veio forte, muito forte, como poucas que
vimos ate hoje.
Uma verdadeira
bomba d´água nos pegou de frente com ventos laterais fortíssimos, muita água, e
o transito intenso de caminhões em sentido contrário, aumentavam ainda mais a
tensão ao pilotar a moto.
Era tanta chuva que
não se enxergava praticamente nada a não ser o farol dos carros em sentido
contrário, e as lanternas das motos dos amigos que iam a frente.
Pilotar com chuva é
complicado e perigoso, exige a máxima atenção possível do piloto, pneus em bom
estado e uma boa proteção para o corpo são essenciais em uma hora destas.
Neste aspecto,
todos estávamos devidamente preparados.
Menos o Toninho,
que não havia colocado a capa de chuva, e foi obrigado a fazer um pit stop em
um posto de gasolina para colocar a roupa quente, embora neste momento, já
estivesse com até com a alma molhada, de tanta chuva que havia tomado.
Em seguida, logo a
frente, nos alcançaria de novo, daí com toda a roupa vestida.
Foi um desafio
enorme vencido pelo grupo, onde a camaradagem e o espírito de equipe mostravam
o seu valor.
Como o rádio
comunicador faz diferença numa viagem em grupo, deveria ser equipamento
obrigatório, pois com ele, a segurança aumenta muito quando viajamos em grupo.
Avisos sobre pista
escorregadia, buracos, caminhões em sentido inverso, carro na retaguarda, carro
ultrapassando eram dadas a cada instante.
Estas informações,
além das brincadeiras durante o trajeto, nos acompanhariam durante toda a nossa
expedição.
Muita tensão em um
longo trecho da rodovia, que tem bom pavimento, mas a chuva era tamanha, que
parecia estarmos deslizando sobre um rio negro.
Vimos que estávamos
prestes a vencer a primeira batalha quando horas depois, vimos lá ao longe no
horizonte, sinais de que a tempestade estava terminando.
Passamos por ela,
rasgamos ela ao meio com nossas valentes companheiras e o sol mostrou sua
beleza, secando a pista e trazendo de novo, a sensação maravilhosa de pilotar
uma moto, ao lado de amigos, rumo ao desconhecido.
Acima de nós, como
em São Gabriel, avistamos um bando de pássaros voando rumo sul, saindo da
tempestade, assim como nós.
A natureza é
fantástica, pois ao mesmo tempo em que proporciona momentos de tensão e de
perigo, também proporciona cenas maravilhosas como aquelas á nossa frente.
Novamente, podíamos
associar um bando de pássaros voando num lindo céu pintado de dourado, com o
nosso bando cá embaixo, rodando juntos e comemorando o fim da chuva.
Ambos rumando
juntos, e saindo com vida da tempestade, que ainda podíamos observar pelo
retrovisor de nossas motos.
Por debaixo do meu
capacete, pensei:
-
Eles, em busca de um lugar seguro para passar a
noite, assim como nós, rumo sul, Ruta 3, pois a noite vai chegar logo e também
precisamos chegar a um lugar seguro para descansar nossos corpos.
Logo após a tempestade,
veio o sol e a calmaria voltou na estrada novamente.
Com ela, as
conversas no radio PX voltaram também, agora não para alertar sobre caminhões
ou carros, sobre água na pista ou outro perigo.
E foi assim, que um
assunto já esquecido e que tinha sido discutido no rádio PX ainda na saída do
Brasil, voltou a ser discutido neste trecho da Ruta 3:
-
O significado da palavra CAPÃO.
Isto mesmo,
“capão”.
Coincidentemente,
neste trecho da Ruta 3, após termos passado pela tormenta, avistamos vários
“capões” no caso, de mato, e o assunto voltou a tona.
Tudo começou quando
o Chico perguntou, em algum outro ponto da estrada, lá no Brasil:
-
Alguém aí sabe o significado da palavra Capão?
-
Porque temos Capão da Canoa, Capão Alto, Capão
Redondo?
-
Olha Chico, veja bem, aqui no meu Rio Grande,
capão é um amontoado de árvores juntas, soltas no meio do campo, responde o
Beber.
-
É isso mesmo, lá em São Paulo o significado é
este mesmo, um capão é o resto de uma floresta ou capoeira que existia, e que
ao ser derrubada para dar lugar ao pasto, o homem preservou um restinho dela.
Lá no meu estado, também temos nomes de cidades, como Capão Bonito, respondi
eu.
Já o Toninho, deu
outra versão:
-
Pessoal, posso falar?
-
Lá em Mato Grosso, “capão” é quando se “capa” o
touro, o cachorro, o porco, para que engorde mais rápido, ou não procrie, então
é assim que chamamos.
-
É o animal “capado” entendem?
-
Olhem ali, á direita, aquilo então é um “capão”?
Pergunta o Alexandre.
-
Exatamente meu caro, aquilo ali é um “capão” e é
assim que o conhecemos, confirmou, confirmando o que eu havia falado.
-
Exatamente Beber, é isto mesmo, aquilo ali são
“capões” de floresta, confirmei.
A verdade é que
quando se viaja em um grupo de amigos como o nosso, o estado de espírito de
todos é tamanho diante da felicidade em estar ali, viajando de moto, ao lado de
pessoas amigas, que qualquer assunto é bom, mesmo que o tema seja desconhecido
ou que em qualquer outra roda de conversa, se tornaria sem qualquer interesse,
como este do “capão”.
Ao viajar de moto
ocorre uma transformação no seu modo de enxergar as coisas, fazendo com que, um
assunto bobo, seja debatido até a exaustão.
Foi o caso do
“capão”, que relatei apenas como exemplo.
Mas tiveram muitos
e muitos outros ao longo da nossa jornada.
Vamos sentir muitas
saudades das longas discussões que fizemos pelo rádio PX durante a nossa
expedição.
Este é apenas um
exemplo que lembramos.
O que se pode
observar neste trecho entre Buenos Aires e o Rio Colorado, são imensas fazendas
de criação de gado, plantação de girassol, milho, soja e outras variedades a
perder de vista.
E seguíamos felizes
pela Ruta 3, bom asfalto, longas retas e longas discussões sobre os mais
variados temas.
Ao final da tarde
entramos em Bahia Blanca *, simpática cidade localizada próxima ao litoral argentino.
* Bahía Blanca é
uma cidade da Argentina, na província de Buenos Aires, distante 650 km da
Capital Federal. Foi fundada em 11 de abril de 1828. O nome Bahia Blanca tem
origem da brancura dos salitres costeiros. É a cidade urbana mais importante do
sul argentino e importantíssimo complexo portuário, sendo o porto de grãos mais
importante do país. Sua população é de 274.509 habitantes (2001).
Cidade tipicamente
industrial. Abriga muitas indústrias químicas, dentre elas, uma refinária da
Petrobrás.
Fonte: Wikipédia
Seguindo o Road
Captain, rumamos direto ao posto de combustível marcado no GPS para
abastecimento das motos e deixá-las prontas para a partida na manhã seguinte.
Esta dica é de
grande valia aos viajantes que nos lêem neste momento:
Dormir com todas as
motos abastecidas para, no dia seguinte, não perder nenhum minuto em
abastecimento.
Parece nada, mas
faz enorme diferença na saída do dia seguinte e esta regra seria seguida em
todas as nossas paradas.
O grupo também ia
se transformando, e já havia desenvolvido habilidades entre os membros,
deixando de ser dependente de um ou dois amigos mais experientes.
Assim, enquanto uns
terminavam o abastecimento, o Beber e o Buatim se encarregavam de procurar e
negociar as tarifas dos hotéis, enquanto todos esperavam no posto.
Assim, evita-se que
todos se desloquem no transito mais pesado das cidades e, assim que os dois
retornassem com duas ou mais alternativas de tarifas, o grupo escolhia e todos
iam juntos ao hotel.
Coisa linda.
Eu e o Lelê nos encarregávamos
da escolha do restaurante para o jantar, e o Ivan, das dicas de passeio.
Nos deslocamentos,
Lelê como RC, o Chico como apoio, e o Joaquim como Cerra Fila cuidavam
do comboio.
Toninho e MacGyver,
não deixavam ninguém com sono no percurso, com suas histórias, desafios de
conhecimento e as brincadeiras, tudo pelo rádio.
Estávamos nos
tornando uma equipe.
Naquela noite, no
hall do Hotel, ficamos sabendo por um viajante que aquela tempestade que
pegamos no início do caminho, havia horas antes passado próxima dali, e muito
mais intensa do que havíamos enfrentado, com ventos fortíssimos, muito mais
perigosos.
Me lembrei das
gotas de óleo debaixo da moto, que nos obrigou a fazer o reparo e atrasou nossa
partida.
Se tivéssemos saído
mais cedo, teríamos pegado a tempestade muito mais intensa do que pegamos e
isto, nos deu um conforto maior ainda.
Neste dia, um
jantar com as excelentes carnes argentinas foi oferecido por mim, já que era a
minha primeira viagem internacional de moto.
O primeiro grande desafio
havia sido vencido, enfrentamos o imprevisto em Buenos Aires e a Tempestade no
caminho.
Isto tudo havia
servido para uma união ainda maior do grupo, e isto já dava para sentir pelas
atitudes e disposição de todos os companheiros.